quinta-feira, agosto 06, 2009

Leituras de Verão (ou a velhice, a morte e a violência)

Para contrariar a ideia das "leituras leves" para o Verão, para as minhas (mini)férias escolhi temas um bocado pesadotes. Começando com a velhice:

Philip Roth - Exit Ghost (O Fantasma Sai de Cena)

Um escritor de 70 anos, deixado impotente e incontinente por uma operação à próstata, vive isolado do mundo há mais de 10 anos, por opção própria. Um dia, de forma impulsiva, decide regressar a New York para se submeter a uma nova intervenção cirúrgica que lhe poderá (não há garantias) permitir recuperar pelo menos a continência.
E de repente é como se tivesse regressado à vida, a tudo o que deixou para trás numa tentativa de se proteger e, embora saiba que é um erro, decide ficar em NY mais algum tempo e acaba por se expôr a contactos para os quais já não está preparado e não tem quaisquer defesas: estar na mesma sala com uma mulher; discutir com um jovem escritor determinado; viver no mundo actual. Neste confronto entre ele e o mundo, é evidente quem é que vai sair magoado.
A partir de metade do livro vamos lendo alternadamente o que realmente acontece e os diálogos que ele escreve quando chega a casa, tal como poderiam ter acontecido.
Esta é uma viagem ao mais íntimo da fragilidade humana, pela mão do mesmo Philip Roth que nos deu The Dying Animal (O Animal Moribundo), que acabei de revisitar na excelente adaptação cinematográfica Elegy (filme que aproveito para recomendar).


Christopher Belshaw - Annihilation:
The Sense and Significance of Death


O último livro deste filósofo contemporâneo (que também editou 12 Modern Philosophers, uma boa introdução a alguns dos nomes mais importantes da filosofia contemporânea de língua inglesa, mas que inexplicavelmente não inclui o meu filósofo favorito, Daniel C. Dennett), não é um livro pesado nem deprimente, ao contrário do que possa parecer.
O autor começa por analisar o que é a morte em geral. Antes de mais, é um processo biológico. O autor apresenta a sua própria definição: a morte é "a perda irreversível de funcionamento do organismo como um todo". Mas depois aparecem complicações: o que é um organismo? Uma semente, um fruto, um órgão, as células do nosso corpo, será que podemos dizer que estas coisas estão vivas? Pode-se deixar de existir sem morrer? As bactérias fazem-no todos os dias, quando se dividem. E quanto a irreversível? Uma paragem cardio-respiratória antigamente era sempre irreversível porque tecnologicamente não era possível reanimar essas pessoas, mas agora já é. Então passamos a considerar que a pessoa morre só quando falham os esforços para a reanimar. Então a definição de morte varia com a tecnologia disponível, ou variam apenas os critérios pelos quais conseguimos identificá-la?
A parte mais interessante do livro não é sobre estas questões de definição, mas sim as tentativas de resposta à pergunta: a morte é uma coisa má? É certamente mau para as pessoas próximas, que continuam vivas e vão sofrer psicologicamente com a perda, mas e para o próprio? E se considerarmos que é má para a pessoa que morre, é má em que sentido? Para os Epicuristas, a morte não podia ser boa nem má, uma vez que "quando ainda somos, a morte ainda não chegou; e quando chega, já não somos". De facto, embora pareça intuitivamente que a morte é uma coisa má, não é fácil explicar em que medida é que ela prejudica o indivíduo que morre, uma vez que assim que a pessoa morre já nada de bom ou mau lhe pode acontecer. Podemos no entanto, sem qualquer dificuldade, considerar que a morte, na maior parte dos casos, vai contra o nosso interesse em permanecermos vivos, priva-nos de boas experiências que poderíamos vir a ter, e impede-nos de prosseguirmos os nossos planos para o futuro, portanto prejudica-nos.
Estas e muitas outras questões, algumas reais (o coma, o estado vegetativo persistente, etc), outras baseadas em cenários hipotéticos, são esmiuçadas por Christopher Belshaw, que comenta também as opiniões de outras pessoas que escreveram sobre o tema. Achei um livro muito estimulante, e embora não concorde com todas as opiniões do autor, fez-me repensar as minhas ideias, que eu achava que estavam tão bem definidas...


Jonathan Gotschall - The Rape of Troy: Evolution, Violence, and the World of Homer

Jonathan Gotschall propõe-se revolucionar os estudos literários trazendo para esta área em que já quase tudo foi dito, uma ferramenta ainda muito pouco (correctamente) aproveitada pelas humanidades: a biologia. Mais especificamente, a psicologia evolutiva, que ajuda a explicar algumas facetas do comportamento humano com base no seu significado evolutivo (por exemplo, a nossa preferência por alimentos hipercalóricos era muito vantajosa para os nossos antepassados na pré-história, e consequentemente ainda temos essa propensão, embora actualmente só nos prejudique).
Neste caso em particular, o autor debruça-se sobre a Ilíada e a Odisseia, épicos que trazem à luz a vida destas pessoas que viviam num tempo bem mais violento que o nosso, em que dos homens era esperado que prezassem acima de tudo a guerra e das mulheres esperava-se modéstia, fidelidade e que parissem muitos filhos.
A uma certa tendência masculina para a agressividade e para a competição com outros homens juntam-se outros factores, como o baixo número de mulheres disponíveis (devido a práticas culturais como o infanticídio e a poligamia), para gerar uma situação de guerras quase constantes, de insegurança e instabilidade permanentes. As populações estavam constantemente em risco de serem atacadas por populações vizinhas, o que geralmente significava a morte para todos os homens e a escravatura para as mulheres e crianças. Estas condições de vida por sua vez influenciavam as escolhas que as pessoas faziam mediante as (poucas) alternativas que tinham.
Um estudo sobre literatura que é ao mesmo tempo um estudo sobre os gregos e a vida das pessoas na antiguidade que é ao mesmo tempo um estudo sobre a natureza humana.
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Aproveito para acrescentar que os últimos dois livros que referi foram comprados na Livraria Leitura, no Porto, que podia ser melhor mas que ainda assim sempre vai tendo algumas novidades interessantes e que não se encontram na FNAC.

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