quinta-feira, março 09, 2006

Alimentos Trangénicos – Um Guia Para Consumidores Cautelosos – Margarida Silva – Universidade Católica Editora, Campusdosaber3

Apesar de ter lido este livrinho por interesse profissional, aconselho-o vivamente a todas as pessoas (as que andam a dormir, as que querem acordar e os naturalmente interessados pelo que se passa no mundo). Cada vez mais temos de adquirir a capacidade de aprender a “filtrar” a informação que nos é vendida pelas autoridades governamentais e entendê-la nos contextos políticos actuais.

Não me encontro em condições de criticar o livro em causa, porque não faço investigação na área nem li toda a informação disponível sobre os alimentos trangénicos (OGM = organismo geneticamente modificado), mas o meu senso comum não pode deixar de concordar com o que a autora diz em relação a todas as implicações que os OGM poderão ter na saúde humana, no ambiente, na sociedade e na agricultura. O livro é muito pequeno, lê-se num instante e tem uma linguagem acessível para quem não entenda de engenharia genética.
Deixo aqui uma amostra para terem uma ideia (Capítulo 4 - Quais são os riscos dos alimentos trangénicos para a saúde humana?).

“Se os OGM estivessem a ser desenvolvidos para ajudar a alimentar os que não têm comida (e que são quase mil milhões), então deveriam estar a aparecer sementes com certos tipos de características: capacidade para crescer em solos pobres e climas agrestes, com maior conteúdo proteico por hectare, sem necessidade de fertilizantes, pesticidas, regas ou maquinaria cara, com características que favorecessem as pequenas explorações em detrimento dos latifúndios, baratas e próprias para alimentar pessoas em vez de animais. Nestas regiões a sobrevivência prende-se com um conhecimento íntimo de características únicas em termos de clima, estação, topografia, solo, biodiversidade, acesso aos mercados e demais recursos, num equilíbrio difícil em que as condições de produção máxima raramente ocorrem. A segurança do agricultor passa pela sementeira de múltiplas variedades de cada espécie, algumas das quais só existem localmente, e cuja valia não deriva tanto da produtividade mas da robustez. Mas aquilo que se verifica, a avaliar pelas variedades já comercializadas, é um investimento das empresas de biotecnologia precisamente na direcção oposta. A actual geração de sementes trangénicas requer solos de alta qualidade, grandes investimentos em maquinaria e químicos, está pensada sobretudo para rações animais e apresenta, pelo menos nalguns casos, uma produtividade inferior à das variedades convencionais.

A posição de que os alimentos trangénicos podem contribuir decisivamente para acabar com a fome nos países mais desfavorecidos assume implicitamente duas premissas:

-há falta de comida nos mercados nacionais e internacionais,
- com os OGM produz-se mais comida.

Nenhuma destas premissas está correcta, nem nunca esteve.

O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas estima que neste momento existem tantos alimentos disponíveis que dá para alimentar toda a população humana e ainda sobra um terço do total. A FAO, um outro organismo das Nações Unidas, estima que 80% das crianças com fome no terceiro mundo vivem em país com excedentes agrícolas. Não se trata portanto de um problema de falta de produção: nos mesmos países do Corno de África em que a fome ao longo da década de 1980 matou mais de 300 mil pessoas, mantiveram-se as exportações de algodão, linho e cana de açúcar (produzidos nas terras mais férteis) para os países mais desenvolvidos. No Brasil, o terceiro maior exportador mundial de comida, continuam a morrer perto de 100 mil crianças anualmente devido à fome e a causas relacionadas com a má nutrição.

O aumento de produção, aliás, pode resultar num aumento de privação. Na Costa Rica a produção de carne duplicou entre 1959 e 1972, mas o seu consumo per capita diminuiu 37 por cento no mesmo período. A carne foi exportada, em parte para alimentar os animais de estimação do primeiro mundo. Na América do Sul a fome aumentou 19% entre 1970 e 1990 embora a produção alimentar per capita tenha aumentado 8% no mesmo período. Isto significa que aumentou a comida disponível para cada pessoa, em média, e portanto a fome devia ter diminuído, nunca aumentado.
A causa principal da fome é a falta de acesso à comida – pobreza – e não a falta de comida à venda. Num mundo globalizado tornou-se mais normal produzir alimentos para quem vive do outro lado do mundo e pode pagar, do que vendê-los ao vizinho do lado que é pobre e não consegue competir em poder aquisitivo. É o leilão global e quem não tem dinheiro não pode arrematar para comer, seja ou não trangénico.

(…)

Se há fome é porque há quem lucra com isso, quem faça negócio disso, e os OGM não vão alterar a situação. Melhor que ninguém, Steve Smith, um dos executivos da Novartis (agora Syngenta), explicou numa conferência pública em Março de 2000: «Se alguém vos disser que a biotecnologia vai acabar com a fome no mundo, digam-lhe que não vai. Alimentar o mundo exige vontade política e económica, não é uma questão de produzir e distribuir.»
A falta de vontade política está a sentir-se noutras frentes. Os centros internacionais de investigação e melhoramento convencional de espécies agrícolas (CYMMIT no México e IRRI nas Filipinas, por exemplo) têm visto os seus orçamentos encolher drasticamente nos últimos anos devido ao desinteresse dos países doadores. A selecção de novas variedades por métodos tradicionais é vista como uma metodologia ultrapassada, fora de moda, ao passo que a engenharia genética atrai cada vez mais atenções e financiamentos.
Do mesmo modo o desenvolvimento de metodologias alternativas também desperta pouco ou nenhum interesse. Conhecimento, saber-fazer, boas práticas agrícolas, tudo isso representa um mau negócio: por um lado não se pode vender aos mesmos agricultores ano após ano (como as sementes e os herbicidas), por outro lado contribuirão para tornar os agricultores progressivamente independentes dos interesses comerciais predadores. E isto pode ser bom para acabar com a fome no mundo, mas é péssimo para o lucro das grandes empresas".

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